PROVIDÊNCIA ESCURA
- Judecca
- 18 de mai. de 2022
- 7 min de leitura

Este texto literário foi baseado em um momento da vida do profeta Elias, a referência bíblica é I Reis 17.
A ideia desse tipo de texto surgiu da liberdade da minha imaginação que em determinado momento me perguntou: "E se pudéssemos ver esse acontecimento por outra perspectiva? por outros olhos?". Foi então que decidi contar através de artifícios literários, o que os corvos viram, o que fizeram, antes que chegassem até o profeta que esperava na beira do ribeiro de Querite. A imaginação nos dá possibilidades maravilhosas, nos dá a oportunidade de ver o que não conseguimos, de pensar o que não foi pensado, de viver o "invivido" através das palavras. Desfrutem desse texto em forma de possibilidade imaginária!
PROVIDÊNCIA ESCURA
Presságio escuro escaramuçava as patas imundas em toalhas de linho finíssimo, penas negras maculavam as reluzentes taças de ouro e bronze impecavelmente polidas, dispostas cuidadosamente em cima de uma vasta, farta e exuberante mesa. Nela, corvos festejavam irriquietos enquanto serviçais, de costas, ocupavam-se com os afazeres diários, rotineiros de um grande palácio; sob a desatenção dos servos as aves farreavam. Digno de deuses era o tal banquete, digno de sacrifício e libações à rainha dos céus. Entretanto para a surpresa dos deuses as frutas estavam sendo dilaceradas, as bebidas sendo derramadas pelos corvos, que dançavam invisíveis sobre a mesa, rodopiando e conversando entre si um segredo que só as aves sabiam.
Talheres reluzentes como a luz da manhã são espalhados pelo chão com o furdunço oferecido pelos corvos, o tintilar frenético do metal anuncia aos criados a presença dos visitantes indesejados que aparentam nada comerem em abundância, de nada alimentam-se de modo a fartarem-se, nada ali parecia apetitoso o suficiente à elas, trazem consigo somente uma busca caótica naquela manhã para aqueles aposentos.
As aves negras buscavam algo, porém, não para elas. Inspecionavam minuciosamente cada espaço do banquete procurando o alimento sagrado, a massa fermentada macia como as brumas, elas buscavam levar o pão da mesa do rei Acabe.
Furiosos, os criados do rei prostrado espantam aves à vassouradas, abanando panos e jogando-lhes água fria, vociferando maldições, mas os pequenos gatunos diurnos já haviam avistado belos e pomposos pães dispostos entre uvas verdíssimas e suculentas, raras em tempos de seca, somente ali, em desventurada mesa, encontrava-se tanta subsistência dada pelas mãos derruídas da imundícia. Nada, nenhuma daquelas frutas o interessavam, apenas os pães, cortavam a massa com o bico, rasgavam-na apressadamente, subtraindo pedaços suculentos. Apenas migalhas restaram na mesa do rei. Migalhas de pão levadas pelas abominações escuras que voavam em fuga.
Rei e servos, crianças coradas e senhores sem tom, guardavam tal ciência de que ter o alimento afanado pelos corvos, considerados arautos noturnos da morte, é um temível presságio, o sono de alguns partiu e nunca mais retornou, homens prostravam-se e sujavam seus joelhos no pó da terra sem lei, implorando misericórdia, pois nem mesmo os grandes sacerdotes da noite e do dia, invocadores da lua e do sol, nem ancestrais e nem poderes celestes tinham forças sobre a rebeldia de tais criaturas. Nem mesmo os videntes de olhos mais antigos, nem os oráculos mais sábios poderiam revelar o mistério de quando a morte volante rapinava sob alimento da mesa do rei. Apenas o horror do azar indizível pairava nos ares.
Quão miseráveis são os palácios dourados, quão infaustos são os corredores brilhantes, quão nula exuberância, desventurada beleza, quão algares são os imensos portais preciosíssimos, ainda que polidos fossem os palácios pelo mais talentoso artesão das terras e das eras, certamente não conseguiriam remover a mancha enevoada por trás do brilho primeiro, certamente não purificaria a mácula na alma do ouro e da prata, certamente não faria brilhar os olhos da ágata. Cova profunda são os altos e fortificados alicerces da majestade, não sabem que enquanto caminham sob lume majestoso a potestade que voa ao meio dia faz sombra sobre suas casas. Mas nada disso foi trazido pelos corvos, a maldição nutre as vigas fortes do palácio, é o tutano dos ossos dos homens, desde que a serpente falou.
Tão vigorosa era a sombra do abismo sobre esses homens, que o firmamento de Deus tornou-se a Abóbada de Baal fazendo suas almas serpentearem nas sombras debaixo da luz, e furiosos os homens cospem-se, pintam seus rostos, derramam sangue, imolam cordeiros tolos, banham-se na iniquidade e na violência, clamam em meio a imundícia com vozes chorosas, amaldiçoam os pobres corvos no céu que carregam graciosamente em seus bicos e garras pedaços de pão pelos ares, mas em nada tais maldições os aflige, são santos livres, incumbidos de alta missão, alimentar a boca da voz que vem dos céus, para que a voz que vem dos céus alimente os famintos.
Com os bicos repletos de pão dançavam incomumente em bando pelos céus, cruzavam os ventos e a terra debaixo do sol sem engolir uma migalha sequer, em breve a providência escura chegaria. Oscilando entre uma corrente de ar e outra, mal batem asas, deixam que o sopro seco do deserto conduza-os para os limites da terra, onde o milagre acontece as beiras de um ribeiro que nunca seca.
Nas alturas do trono sagrado, onde a terra declara a glória eterna, desde as pedras rasteiras que clamam alto até os montes que se esforçam em escutá-las, dançando pelo firmamento seguem, sendo sol castigo ou dádiva para expressar o opróbrio que passavam, em baixo, os caminhantes, por terem sido afligidos pela morte, pelo corvo enviado dos mortos aos salões rei, corvos potentes a que tudo resistiam, pairavam tranquilos no céu, com asas calmas, como quem nada sentem, e observavam com olhos altivos o movimento na terra dos andantes, lá embaixo. Se ri Deus, no céu, ao contemplar tamanha ignomínia humana, pois magos trajam vestes sacerdotais de magia escura, com imundícia primitiva amaldiçoam as aves tranquilas, deitam em terra seu rosto para que raios caiam e as eliminem, para que os presságios de morte cessem por fim. Se ri Deus dos arqueiros experientes, que chamados ao combate surgiram armados, com aljava repleta, para matar o pior dos inimigos, pássaros enviados pelo mundo dos mortos; incumbidos estavam de matar a maldição, de destruir a morte e acalmar, do rei, o coração. Mas nada os afligia, flechas certeiras desviavam-se, setas longínquas sequer foram lembradas, nem uma pena somente lhes foi arrancada, sequer uma faísca caiu do céu. As aves passaram pelos muros e seguiram o caminho de Deus, enquanto lá embaixo, no mundo dos andantes, viam que deixavam para trás a fúria dos poderes.
O voo pelo deserto rochoso escreveu nos olhos das aves a calamidade, cordeiros que de sede pereciam enquanto pastores choravam ajoelhados, prostrados em seus cajados com lágrimas salsas que logo haveriam de secar. Jumentos que desejariam a morte se soubessem reter a situação em que encontravam-se, ossadas infinitas pelo vale estéreo alimentavam cães famintos que lutavam violentamente contra o assalto das raposas, que cansadas de esperarem a noite chegar, impetuosamente partiam para duelo mortal. Nada de bom sai de um deserto como esse, da terra seca nada emerge, as corças já morreram ou partiram, e não havia nada que os homens pudessem fazer para reter a ira divina que repousava sobre as ossadas. Apenas rendiam-se ao calor que afligia a pele, a fome que afligia o estômago e ao lamento que afligia a alma.
Todavia, de olhos atentos, as aves da maldição veem a beleza que brota no desajuste da tribulação, em ínfima fenda insignificante em meio aos cadáveres, um milagroso lírio buscava o sol para alimentar-se, rompendo vitorioso o duro chão, despontando sua beleza celeste aos céus, emanando a providência na sequidão mesmo que os homens não estivessem vendo. Ainda que não percebessem, o sustento divino os circulava, a esperança nasceu em suas costas, escondida, e logo haveria de brilhar feito o romper da aurora sobre suas cabeças, pois assim como o nascer do sol, ninguém sabe o momento que o primeiro raio de luz há de tocar a terra, sabemos que de surpresa chegará e eliminará as sombras.
Nos limites das terras secas um pequeno ribeiro achava leito em meio as pedras, finíssima tira d’água nutria a débil vida de uma árvore, que cansada, insistia em secar-se, entregava-se pouco a pouco à morte no esvair das suas forças que não eram mais suficientes para manterem as folhas ligadas a si, caiam uma a uma todo o tempo; fraca corrente em meio as pedras cinzentas e minimamente enlodadas também nutriam a vida de um homem, profeta de Deus retirado do meio da agitação dos homens que queriam matar-lhe. Pacientemente esperava, o profeta, a divina providência diária, pacientemente clamava nos tempos de calamidade, clamava e os ouvidos da pátria celeste lhes estavam abertos. Com os pés molhados, sentado à beira do ribeiro o profeta olhava o céu e esperava anjo que o alimentasse e o livrasse da fome, atentava os ouvidos para ouvir o assoviar da voz do Deus pelos ares, mas nada escutava. Com os olhos perseguia o favor divino pelas extremidades da terra, mas nada enxergava.
O iluminado dos céus buscava o vento arrebatador de outrora, ventos que fendiam os montes, mas cessou o vento em meio a sequidão; buscava o brado da terra, um poderoso terremoto, mas a terra havia cessado de gritar, não se fazia ouvir para o profeta; buscava chamas imponentes de fogo que pudessem lhe dar sinal da presença de Deus, mas o Senhor não estava no fogo.
Então, pequenos pontos negros que voavam sob o azul intenso do firmamento, em asas mansas e delicadas, viu-se a voz da criação que fala ao homem; a voz do Senhor vinha em forma de providência trazida pelos corvos, com alimento em seus bicos e garras.
Ao homem que esperava anjos e ventanias, terremotos e labaredas, via pousando diante de si mesmo sob as pedras o pássaro da maldição. Ele abençoou as aves, bendisse-as com palavras de vida e misericórdia sobre suas cabeças. O alimento inesperado vindo de providência escura encheu-lhe plenamente o estômago, saciou-se o santo, no corpo e na alma.
Onde viam o azar rasgar o céu, a morte certa anunciada, um mistério enviado pelos deuses das profundezas digno de maldição, viu o Senhor Providência Divina ao falar a perfeição nos ouvidos das aves escuras e rejeitadas. Pois torna o mal em bem, o Senhor, torna o azar em diligência, o mistério profundo em revelação delicada, o lamento da fome em graça de alimento e o anúncio de augúrios da morte em paciente vida.
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