O SINO QUE TINE
- Judecca
- 20 de jul. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 22 de jul. de 2022

Este texto que irá se seguir é fruto de algumas reflexões sobre o significado da frase dita no verso de 1 Cor 13 "se eu não tivesse caridade, seria como o metal que ressoa, como um sino que tine". A construção desse texto é baseada na questão "Porque "um metal que ressoa"?", na tentativa de ilustrar a função do amor em paralelo com a função de um sino que soa vazio de sentido e seus frutos.
Ninguém sabia porque o sino tocava ao meio-dia, todos os dias, por anos, sem nada anunciar. Ninguém conhecia o seu construtor, não há notícias de seus arquitetos, apenas duas coisas davam atestado de sua natureza: seus fundamentos curvos que deixavam a torre inclinada e uma assinatura na sua estrutura insalubre, uma frase antiga em latim gravada na pedra que diz “non caritas”, “sem amor”. Isso diz mais do que precisamos saber sobre a construção.
O dia é tortuosamente sereno na terra dos viventes, as noites brancas que se sucedem eternamente, silenciosas, são quebradas pelo ranger do abrir das portas e pelo rastejar de pés cansados que obedecem a dádiva fria que cai do céu. Está nevando. Pouco a pouco, véu a véu, a neve atapeta o teto das casas e cobre as ruas com a melancólica canção dos ventos gelados orientais, que sopram sobre os homens, sobre os animais, em todos debaixo do sol. Fracos raios de luz adentram a pequena cidade, caminham tímidos entre as nuvens até o chão, onde homens, mulheres e crianças, sentam em caixotes e observam a neve descer lentamente, olhando para os céus como quem espera algo mais que neve, mais que vento, mas ao perceberem que nada vem, suspiram de desgosto. A cidade inteira espera algo que novamente não chegou.
Os mesmos raios de sol que fendam as nuvens até o chão, tocam também o pico de uma enorme, inclinada e enegrecida torre do sino, que ascende do solo como um dedo esguio que busca tocar as nuvens sem sucesso. A sinuosa condição faz-nos pensar que logo ruirá, cairá e destruirá lares e famílias, mas a inscrição cravada na rocha “non caritas” nos diz que a ruína já veio, a destruição já aconteceu. Seria uma construção terrível em outras condições, mas na cidade branca ela era um símbolo de esperança.
Mas, o que buscam essas pessoas olhando para o céu? que dádivas das nuvens esperam? No frio inverno que os acomete há uma esperança maior que a necessidade do calor de uma lareira, eles esperam há anos a vinda do que anuncia a torre, o que quer que seja que ela invoque. Os anos de frio fez com que os moradores dessa cidade esperassem o sol, o calor, a salvação; outros esperam o alimento para nutrirem a si mesmos e a seus filhos, pois o inverno impossibilitava o plantio; outros esperam a alegria dos bardos cancioneiros, que transformaria dias apáticos e eternamente imóveis em momentos dançantes. Todavia o sino dourado no topo da torre apenas ecoa por entre as nuvens e cessa o seu badalar diariamente, sem que nada aconteça, frustrando o coração dos que esperam.
O sopro frio do vento se intensifica, as pessoas novamente arrastam seus pés para dentro de suas casas, cobrem os rostos, apertam os olhos para livrarem-se da visão enevoada. Inevitável. Somente o fechar das portas conteve o gelo do chão e dos ares. De dentro dos lares ouve-se apenas os pássaros cantando belos hinos ao Pai de todas as criaturas de dentro da torre esguia, quebrando o imperial silêncio que a desesperança transformou em tristeza.
Do céu vem luz e graça, frio e água, a natureza não necessita de um anuncio para se alegrar, ela é o anuncio, mas a névoa nos olhos dos homens é espessa, os faz ranger os dentes, e para eles a cantata das aves soa como um réquiem, a luz do céu apenas acentua a escuridão e o frio apaga o fogo, faz doer os ossos.
Essa névoa irremovível os faz depender apenas do que ouvem, da notícia que o sino traz, mas a boa nova que nunca chega destrói a fé e joga um balde de água fria no amor. Pois nos olhos dos vivos só há obscuridade, inquietude, não há uma canção sequer que em seu passeio pelo éter não soe lúgubre, não há luz o suficiente para dissipar a neblina de seus olhos. Quando olham através das janelas de suas casas veem claramente apenas uma coisa, a aproximação do rei do terror, a morte que se intensifica com o frio e com a fome, e a cada passo dado por ela, o amor dá um passo na direção oposta. É por isso que dependem do som do sino, para sentirem algo além da morte que chega a passos largos.
É então que no centro da cidade branca, na hora do topo do sol, um grave e mórbido sino badala, ecoando um som escuro e soturno, fazendo tremular dos ossos ao coração com a baixeza de sua frequência. Não importa o que estejam fazendo os homens dessas ruas cândidas, não importa as dores no corpo, a fome, o frio, a morte que espreita, ao badalar do sino todos caminham, cavalgam, rastejam para contemplá-lo. Ajuntam-se aos pés da torre, atendem ao seu chamado, pois sabem que um sino que tine é um anúncio, beira um presságio, o som vazio do metal alimenta a chama da esperança em suas almas, e esse calor os mantém vivos. Pois há quem acredite, que seu ecoar proseia com os anjos nas mais altas línguas dos círculos celestiais, que os anjos ouvirão o clamor dessa pequena cidade e enviarão os oráculos do Santo Pai em seu resgate. Há quem creia que o tinir do velho sino invoca os homens das outras terras, das outras nações, para livrá-los da neve e da névoa, do terror do frio fim da morte. Mesmo sendo consumidos pela esperança enganosa que traz o sino oco, a esperança insiste em nascer todos os dias nos olhos penosos dos que clamam aos céus com gemidos aos pés da cama. Para eles em algum momento o som será um sinal verdadeiro, e sem avisos virá a salvação.
Enquanto ouvem o sino, olham para o topo da torre negra com expectativa, mas a vagarosa dança do sino, o seu soar hiato nada invoca, nada crê, nada espera, as batidas do sino nada anunciam, é bronze que range no bronze. Os homens que caem aos pés da torre e esperam, são levados ao chamado que o sino faz a si mesmo, tocando do nada e para ninguém, se propagando no vazio da cidade branca.
Alguns já perceberam que a salvação não vem, nem os céus nem os mares ouvem, o som que vem dá torre não dá presságio de um lume maior que si mesmo. O sino que quer ser adorado como uma igreja, uma notícia que quer ser maior que o acontecimento, parece inconcebível tamanha loucura, mas assim alguns o concebem. E esses, voltam para casa todos os dias, esperando o dia que um anuncio maior virá e os livrará dos tempos obscuros que cercam aquela cidade, do frio que congela a esperança, da tristeza que corrói o amor.
Mas acreditem, em determinada madrugada em que a cidade estava sendo assolada por uma severa nevasca, uma criança que amedrontada com a ventania passava a noite em claro viu passar pela avenida um homem que enfrentava a tempestade apenas com casaco, botas e uma mochila velha nas costas. O homem dirigiu-se até a torre do sino sem chamar atenção, tirou as ferramentas da mochila e camuflou o barulho das marteladas contra a rocha negra com o assovio intenso do vento. Ele martelava e martelava com ardor, limpava o gelo da barba imensa que congelava a cada lufada de vento, e por fim terminou o serviço. Juntou tudo e silenciosamente foi embora, sumindo em meio ao nevoeiro que a tempestade invocara, sem chamar atenção assim como havia chegado.
Seria ele o arquiteto? O construtor? Ninguém o sabe dizer, porém, ao raiar do sol o calor invadia as janelas com ímpeto pela primeira vez em tempos incontáveis, derretia aos poucos a neve nos tetos e nos pinheiros, as pessoas levantaram-se da cama com estranha sensação que não sentiam há anos. Vigor. Logo abriram as portas para procurar o responsável por tal milagre, se anjos, heróis ou bardos, mas contemplaram algo maior do que tudo que pediam ou pensavam. Perplexos e boquiabertos olhavam para cima, para a torre, sua estrutura antes torta estava plenamente ereta, e a assinatura na rocha havia sido mudada, apenas “caritas” restou.
Pouco a pouco o evento curioso chamou a atenção de todo, fazendo uma multidão juntar-se aos pés da torre para admirar o milagre daquela manhã. Então algo inesperado aconteceu surpreendendo a todos, antes que fosse meio-dia o sino badalou, o som soturno de seu tintilar tornou-se alegre e melódico, os pássaros cantavam junto a mágica melodia, o eco nos ares avivou a alegria do povo que sorria e chorava sem que pudesse conter. As crianças corriam e brincavam na neve novamente, o fogo das lareiras intensificou-se ao soar do sino, a grama verdejante passou a brotar em meio ao gelo, e no céu as nuvens cinzentas que antes imperavam sobre o firmamento dissipavam-se ao soar do metal, revelando através das fendas nas brumas o azul vívido, o anúncio de um novo céu.
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