O REFLEXO DE NINGUÉM
- Judecca
- 30 de out. de 2022
- 11 min de leitura

Estou a todo o tempo um passo atrás de mim mesmo. Não soube dizer até hoje que hediondo pecado pratiquei, mas desde aquela noite penosa aprouve à Deus me castigar retirando dos meus olhos a visão do meu rosto.
O relato daquela noite perversa que vos escrevo como um último suspiro, é resultado de acusação tardia de minha alma, após todo o sofrimento, de que não há mais esperança para mim. Deixo registrado nessas páginas a desesperança que cresceu e esmagou-me aos poucos, sem alternativa alguma sucumbi ao pesadelo, e estas são minhas últimas palavras, farei minha última oração e irei para sempre. Irei para lá.
Na noite em que o nosso senhor morreu, na páscoa de nossos dias, parti o pão, dei graças e disse: "Comamos e lembremo-nos", para mim mesmo e todo o aposento solitário em que me encontrava. Esculturas de santos que de seus nomes pouco me recordo, me acompanhavam. Há tempos não rezava, nestes últimos dias me bastava sentar-me na confortável poltrona de veludo roxo diante das imagens na estante, entre livros desarrumados, e conversar face a face, diretamente com eles, ou simplesmente observá-los, na fé de que a esperança desnutrida em mim recebesse alimento. Mas a oração naquela noite era inegociável, ainda, afinal, era o início das comemorações de páscoa. Comi os pães devagar, remoendo como um cavalo remói a grama seca, observando as horas correrem, além disso o pão jazia na mesa há mais de uma semana, já estava muito duro e prestes a ser tomado pelo mofo. Um velho vinho melhoraria a ceia medíocre que tivera, não precisava ser bom, apenas tornar o corpo de cristo digerível naquela noite.
Olhei através da janela buscando ver o letreiro do mercado ainda aceso, na esperança de que ainda estivesse aberto. E estava. Para lá da janela as calçadas estavam movimentadas, famílias que dirigiam-se à igreja matriz para a celebração de santíssimo dia, por todo o trajeto ouvia-se o comemorar da vitória do único homem que venceu o sono eterno. Conversavam excessivamente frente ao monumento sagrado, entoavam canções pascoais, e a cada minuto que passava observando mais pessoas juntavam-se à aglomeração; vento encarregou-se de trazer até mim todos esses ecos radiantes. Decidi, então, levantar-me da poltrona que me abraçava acolhedora e ir comprar uma garrafa de vinho barato.
Todavia, digo-te, não sentia-me naturalmente seguro ou confortável, algo naquela noite medonha me fazia recuar, feito um gato em perigo que eriça-se instintivamente frente a um poderoso cão. Mas segui.
Com profunda indignação pergunto-me: Quão caótico é o arquiteto que ordenou aquela noite? Soprou em minha mente obscuridade imperceptível, e antes que percebesse já habitavam as esquinas dos meus pensamentos subconscientes. Subverteu meu pensar, e sem que eu imprimisse qualquer vontade oposta levou-me pela mão até tão medonho cavalheiro. Digo-te isso porquê eu certamente não me esqueceria do vinho para cear na sexta-feira santa, somente um intento maligno me faria olvidar. Fui obrigado a sair em meio a fruição sinistra daquelas ruas que me arrepiam ao simples ato de rememorar. Uma canção dissonante, inaudível, orquestrava os elementos da noite, regendo-os de maneira profundamente sórdida, e me amedrontava conseguir vê-los, nota por nota.
A lua, que em dias comuns lançava um banho perolado sobre o véu noturno, era a musa da noite, a estrela aguardada, passou a dispersar raios pestilentos, luzes de mal agouro. Porém, os raios brancos que lançava não eram pragas ao vento pela morte de Deus, não eram lamentos em memória de seu Criador, e sim luzia pálida no céu sem estrelas, como uma luz de vela que centelha no meio da escuridão, invocando algo terrível das profundezas do céu. Por sentir o espanto noturno nas entranhas, eu temi, mas não hesitei em levantar-me da poltrona e destrancar as minhas portas. Creio que o destino é implacável, e naquela noite ele fez a necessidade, guiou-me pela mão, e eu não pude, nem poderia, evitar o sofrimento que hoje me atormenta.
Percorri o caminho até o mercado com falsa serenidade, acenando e sorrindo para todos, desejando feliz páscoa aos conhecidos que via passar frequentemente pela mesma calçada durante anos, desde que me divorciei e mudei para cá. Cruzei duas esquinas, onde em uma delas encontrei-me com um conhecido pedinte, dei-lhe algumas moedas que me restavam no bolso para firmar nos céus meu ato de caridade da semana. Mas nada disso diminuía a opressão no peito que sentia, ainda que a todos conhecesse senti-me caminhando em terreno inexplorado, misteriosa angústia subiu ao meu coração por não dispor de ferramentas lógicas suficientes para descrever que males voavam soltos naquela noite. Mesmo assim segui, na esperança de que fosse mais um caso de intuição falida, como as outras, ou o início de mais um episódio das frequentes crises de ansiedade que passei a sofrer após o trauma psicológico da separação.
Entrei e saído mercado rapidamente, com o vinho na mão caminhei com a sensação de que o mau presságio me acompanhava. Intentava o mais rápido possível passar nas portas da igreja matriz para me benzer, esperando expurgar aquele sentimento. Não só o mal pressentimento me incomodava, um crescente ruído distante perturbador e impossível de definir soava aos meus ouvidos ⸻ aparentemente só aos meus, pois nenhum dos caminhantes na rua esboçava incomodo algum ⸻ a repetição cíclica do ruído era nauseante, e o fato de novamente não conseguir explicar o fenômeno agravou o mal estar.
Ouvi, então, ao longe, o som do galopar de cavalos que aos poucos substituía o ruído perturbador e parecia aproximar-se aos poucos, o cessar do barulho substituído por um outro mais natural, conhecido por mim, trouxe momentâneo alívio ao meu coração. Mesmo assim não desviei o olhar da escadaria da igreja, meu objetivo final naquele momento. Mas posso com tranquilidade jurar-te, a cada passo que dei o caminho estendia-se duplamente, à passos apressados via a distância entre mim e o templo, aos poucos, tornar-se quase infinita. Pensei ser mais um dos meus casos de labirintite, meus olhos não me enganariam dessa forma, foi então que decididamente parei, e com os olhos fechados respirei fundo e expirei, buscando fazer uma rápida meditação ⸻ se é que isso é possível ⸻ ali mesmo, em pé.
O som dos cascos batendo contra o chão aumentavam gradualmente, como uma marcha de cavalos destreinados, irregulares, aproximavam-se, e ainda de olhos fechados ouvi-os soar do meu lado. Vagarosamente abri os olhos com um frio estranho habitando meu peito, a curiosidade me vencera e eu não poderia continuar o trajeto se mantivesse os olhos fechados. Novamente fui traído, dessa vez por aqueles em quem depositava a maior confiança: meus olhos e ouvidos. Nada havia ali, som algum soava, animal algum se mostrava.
Ao perceber-me sozinho, a confusão em minha mente já regia meu corpo, meus pés, então, pensaram em dar seguimento imediato a tão estranha caminhada, mas logo que impetuoso preparei-me, as convicções de seguir em frente ruíram ao ver que ao meu lado, uma carruagem surgira misteriosamente, e da pequena janela emergiu uma mão, sombria, medonha, que veio em minha direção, convidando-me a subir.
Nunca antes avistei tão assombroso objeto. O galope vinha de sete corcéis escuros como as fontes do abismo, eles arrastavam uma cabina cinzenta e deformada atrás de si, bufavam ar gélido e batiam as ferraduras contra o calçamento fazendo soar um barulho gravíssimo, porém estridente. Aqueles animais horrendos estavam atados a essa cabina bizarra feita de algo semelhante ao aço, porém, escurecido e enferrujado, a estrutura inteiramente retorcida era desconcertante, formas inexprimíveis de sua composição me causaram um desconforto imediato, desconforto esse agravado pelos gemidos e balbucios indecifráveis que ressoavam nos ares em derredor da carruagem. Não havia rodas para que se movesse, mas ainda assim movia-se sobre algo semelhante a uma forma que eu já conhecia, mas não conseguia nomear. O metal obedecia a uma arquitetura ilógica, labiríntica, retorcendo-se acima da cabina em nove pilares esguios que pareciam formar a entrada de um imenso altar. Tudo aquilo era abstruso demais para a minha mente, tenho dificuldades de imaginá-la até hoje, e ainda assim tudo o que digo é por analogia, nada daquilo era realmente parecido com qualquer coisa de nosso mundo.
Um sentimento dual cruzou meu peito, uma espécie de angústia que inflamava meu coração e me fazia aceitar o implícito convite da mão estendida, ainda que tudo o que eu quisesse dizer era um decidido "não!". Estava sobrenaturalmente atraído por aquela presença aberrante que pousara ao meu lado, fui sendo absorvido pela ideia de aproximar-me e estender a mão de volta, cada centímetro mais próximo fazia crescer em mim a vontade de ir e o instinto de ficar, que tornavam-se cada vez mais, inexplicavelmente, homogêneos.
Fui então puxado, não como a involuntária e natural correnteza das águas do mar, mas sim, arrastado como um cão que é puxado contra a sua vontade por uma corrente em seu pescoço. Não saberia dizer porque segurei aquela mão, porque pisei aqueles malditos degraus, uma força infinitamente maior do que a vontade do meu espírito me fazia descansar na angústia, e essa dualidade de sensações é indizível.
Digo-te que nunca mais encontrei nada tão terrível quanto o que encontrei quando entrei naquela cabina escura, a sombra da morte temeria cruzar tal vale escuro, penoso vislumbre cobriu meus olhos para sempre e os amaldiçoou desde então.
A mão na carruagem levou-me às estrelas, onde pousei, flutuando, frente a um aglomerado cósmico abissal, incomensurável. Espantoso. Inconcebível. Compreender aquilo, para mim, era como uma formiga tentar conceber a totalidade de uma obra de arte, estando ela caminhando sobre a imensidão da tela. As estrelas moviam-se vagarosamente, luzindo em espiral a poeira cósmica de tons púrpura e escarlate. O conglomerado imenso de astros parecia encher-se de algo e esvaziar-se em uma regularidade de tempo, respirava, parecia ter fôlego. A respiração do infinito produzia um som terrível que penetrava em meu corpo por cada poro, me fazendo temer.
Abaixo de mim ⸻ se é que consigo definir lados naquelas condições ⸻ haviam infinitos buracos retangulares de todos os tamanhos, logo percebi que tratava-se de um medonho campo de covas abertas na escuridão imaterial, das quais emanava pútrida e negra névoa, mais escura que a própria escuridão do cosmos.
Inquietou-se, então, minha alma dentro de mim, quase largando-me em terrível lugar. Tudo lá despertava o desconforto da ambiguidade vivida simultaneamente, tal confusão de sentimentos dizia-me que apesar da vontade de adentrar aquelas covas abaixo de mim e ali ficar para sempre, havia uma diferença entre a atração que removera a sobrecarga dos meus ombros e me convidava a descansar naquela medonha floresta de sepulcros, em relação a um descanso verdadeiro e genuíno como eu conhecia. Aquilo não era um descanso cristão, descanso apesar do sofrimento, mas um chamado a descansar no próprio sofrimento.
Cambaleante, olhei para o centro de movimento da poeira colorida e vi dois terríveis olhos, gigantes, titânicos, comunicando agonia e prazer, abrindo-se vagarosamente no meio dos pilares de estrelas que eram como velas para iluminar aquele lugar onde não brilhava o sol, desconcertando as estruturas da minha alma, despertando em mim incomensurável aflição que aumentava a cada momento na medida em que um rosto tomava forma nas nuvens cósmicas diante de mim, rosto enrugado, deformado, decadente. Quando mirou-me, desfaleci.
A salvação então, inesperada, me veio através do soar de uma canção longínqua, desafinada: "Jesus ressuscitado, grande é o Seu poder", cantava um coral repetidamente. De imediato expurgou o terrível olhar que caiu sobre mim, dissipou toda a visão como uma nuvem é soprada ao norte pelo vento, e novamente me vi na calçada, imóvel e sem tom, frente à igreja matriz, que entoava a canção que ouvi ao longe e que acredito, me salvou.
Nenhuma carruagem havia ali, apenas um odor putrefato insistiu em ficar, sem sinal algum dela eu corri, sem espera, para a minha casa. Cruzei, desesperado, as ruas sem tomar qualquer cuidado com veículos nos cruzamentos, ou com os batedores de carteira que espreitavam nos becos. Somente momentos depois percebi que não estava mais em posse do vinho, isso pouco importava naquela hora, a fuga daquela situação apavorante me era a prioridade, como era a prioridade de viver.
Juro em nome de todos os santos, no nome de Deus e de seus santos anjos, que tudo isso aconteceu de fato, o espelho é minha principal testemunha. Desde que tudo isso aconteceu, fui amaldiçoado a não conseguir mais ver a minha própria face no espelho, vejo apenas as costas da minha cabeça, como se estivesse eu atrás de mim mesmo, me observando em oculto todo o tempo. Não importa o que eu tente para reverter minha situação, nada tem efetividade. Maldição nefasta me recaiu e fez inverter ilogicamente meu reflexo somente aos meus olhos.
Faz tanto tempo que nem lembro-me das minhas próprias feições, se sorrio não lembro do meu sorrir, se choro não lembro que expressões faço ao derramar as lágrimas. Gastei parte de todo o meu dinheiro com médicos, neurologistas, psicólogos e psiquiatras, nenhum deles amparou-me, para uns eu sofro de um transtorno esquizofreniforme, para outros estou perfeitamente bem. Meus amigos achavam que o fim do casamento abalou-me psicologicamente, diziam ver meu rosto no espelho assim como viam as próprias faces. Mudaram o pensamento de imediato desde que um deles, em um teste, decidiu pintar a minha face em uma tela duas vezes e o resultado final era sempre uma imagem da parte de trás da minha cabeça.
Custaram a acreditar, mas a verdade sobreveio também sobre eles, e quando souberam de tão sinistra situação pela qual eu passava, quando eu mais precisava, combinaram entre si de cessarem as visitas aos poucos, e logo sumiram de vez me deixando sozinho.
A outra parte de tudo o que restava-me gastei com espelhos, espelhos de todos os tamanhos e gêneros, espalhei-os por toda a casa, do chão ao teto, na tentativa de que o jogo de reflexos sequenciados pudesse novamente refletir meu rosto. Tudo isso apenas causou-me mais confusão, os reflexos invertidos das escadas, portas refletidas no chão e móveis no teto, perturbou minha cognição. Mas acreditem, não sou um insano sem cura por conta de um casamento falido, foi essa maldita doença em meus olhos, a peste na minha alma que me traz angústia e massacra o meu espírito.
Nestes últimos dias, enquanto preparava uma refeição, uma garrafa de vinho idêntica à que havia comprado e deixado para trás em algum lugar naquela noite doentia, apareceu no centro da minha sala entre o jogo de espelhos, não sei se para me fazer ciente de sua volta ou para me fazer temer, sei que temi. Temi profundamente, pois acreditava que tudo se encerrava ali, na maldição que havia de carregar para o resto da vida, mas algo mais terrível estava em meu encalço desde desventuroso encontro.
Há cinco dias tranquei todas as portas e janelas para evitar que o mal que me persegue saia e espalhe-se, ainda que não seja eficaz é a única medida que consigo tomar considerando a minha inutilidade. Tomei esta decisão pois vi um espectro caminhar dentro dos espelhos, um manto sombrio que passeia por entre os reflexos, a mão sombria que me trouxe a perdição acariciar meus pés. Eu sei que ele está voltando.
É impossível para mim quebrar os espelhos para afastar de mim os males, percebi que garanti sua presença quando os instalei, eu o trouxe para cá e junto com ele a fraqueza de espírito somada a um desejo inexplicável de manter tudo como está agora. Um terror maior que eu alimenta-se das forças dos meus braços e perturba a minha vontade, a obscuridade habita a minha mente e rege as minhas ações que intentam-me levar para lá. Ainda que eu ore em prantos suplicando para que retire de mim essa vontade trágica pior que o próprio pecado, os seus são de bronze assim como o foram para caim. Deus sabe o quanto eu queria ficar, mas até mesmo a ocasião do meu sono é perturbada por essa outra realidade infernal a qual fui levado, e se estou acordado ouço sussurros de blasfêmias repugnantes as quais meus ouvidos não compreendem, mas minha alma sim. Já não vivo aqui, então vou-me de vez.
Registro aqui minhas últimas palavras para que saibam em verdade o que houve comigo, para que os que lerem este registro estejam atentos a esses males e tenham melhor sorte que a minha; para que saibam que nem os médicos, nem os santos em minha sala e nem os demônios das profundezas que procurei podem conter essa força das profundezas do universo.
Ele me chama silenciosamente, posso ouvi-lo sussurrar, ele é a voz que invoca em mim uma vontade arrebatadora: a de estar lá novamente.
Jhonathan Jarison.
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