O ECO
- Judecca
- 23 de mai. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de mai. de 2022

O Eco
Não importa o quanto eu olhe, não sei onde pousei. Não importa quão atento estejam os meus ouvidos, nenhum pássaro canta nesta floresta de pedras. Quais caminhos enganosos tomei para chegar até lugar tão insípido? Que rotas correram as minhas setas para que mirassem tão indolente terra...?
Terrível sonho acometeu-me esta noite, talvez eu ainda esteja em pesadelos, pois ouço no profundo do sonhar, os ecos que insistem em me falar. Soam distantes, dizem incessantemente aos meus ouvidos algum segredo incompleto que não consigo decifrar.
“Nunca vais”.
⸻ Onde estou, velho homem?
⸻ Levante-se jovem donzelo, saia da margem desse rio terrível. Não pises aí nunca mais. ⸻ Disse o homem velho e corcunda sob um capuz esfarrapado, negríssimo, que pousava sob seu corpo inteiro.
⸻ Porque conduzes embarcação tão horrenda?
⸻ Conduzo os aflitos de um lado para o outro deste rio, jovem donzelo. Venha, eu te levarei para onde vais. ⸻ Disse o velho homem de cima da embarcação terrível feita de ossos, enquanto estendia um remo de bronze cintilante cuidadosamente para que o jovem o segurasse.
⸻ Porque esse rio nada reflete?
⸻ Tais águas turvas não devem banhar tão branda beleza. Venha, suba, deixe o rio morto para trás. ⸻ Disse o homem pacientemente, ainda estendendo o remo brônzeo para o jovem, expressando nas infinitas rusgas de seu rosto estranha brandura, enquanto observava as águas opacas e inertes que mal pareciam passar.
Que lugar é este que me exaure as forças do braço, que me desperta tristeza profunda? Quão altas são estas paredes sem fim, quão extensas rochas enegrecidas. Pousei em terras onde nem mesmo sopra o vento, onde as estrelas do céu estão adormecidas, obscuras, donde da névoa para além das rochas ouço ruídos, murmúrios, lamentos que pelo céu ficam perdidos.
Apagaram a lareira da minha casa, para onde foi a minha mãe? Meu pai? Que fiz eu aos deuses para que merecesse tamanho castigo? Não há mais o hélix sagrado cintilante no topo do monte olimpo, na terra não há mais campos verdejantes, no ar não há fôlego de vida, no fôlego de vida não há canção! Só me restou memórias do sonho que tive, e os ecos dos daemons que insistem em soarem nos meus ouvidos, atormentando-me.
⸻ Eu imploro-te, diga-me que lugar é este!
⸻ Não posso, jurei a sua mãe que nunca lhe diria até que você descobrisse, e nada mais. ⸻ Disse com calma nos modos, sentando nas bordas da embarcação com cuidado para que seus pés não tocassem a água ⸻ E um juramento feito as beiras desse rio nunca pode ser quebrado, jamais.
⸻ Você conhece a minha mãe? Para onde ela foi? ⸻ A confusão tomava-lhe a mente crescentemente, e angustiava-se com a incapacidade de compreender que desventurado destino lhe acometera, ao mesmo tempo em que os ecos enchiam-lhe os ouvidos e a mente sem trégua.
⸻ Nós não temos muito tempo, meu belo mestre, apenas segure o remo que te levarei para além dessas águas onde estás.
⸻ Como irei contigo se nem mesmo lembro-me de onde despertei? Não recordo-me de ter adormecido em um lugar como este, apenas lembro do que sonhei antes de acordar. ⸻ Disse o belo jovem confuso, remexendo os cabelos com as mãos freneticamente, enquanto uma lágrima escorria de seus olhos angustiados. Sentou-se no chão e pôs o rosto entre as pernas, deixando somente um dos olhos à amostra, olho esse que fitava o homem que habitava a embarcação.
⸻ Belo mestre, garanto o valor dessa moeda que ao cruzar esse rio tudo lhe será esclarecido, a luz verás. ⸻ Disse mostrando um óbolo para o rapaz na ponta de seus dedos esguios e pálidos. A mais pura angústia era expressa pelo contornar do olhar do jovem rapaz. ⸻ Tu és um homem sensível e forte, assim como o belo Orfeu, vem comigo e a sabedoria do teu destino terás.
⸻ Minerva, então, prega-me uma peça? Confunde ela os meus sentidos? Que te fiz eu, Minerva, para que me aflijas tão cruelmente? ⸻ Disse o jovem mostrando a sensibilidade jovial atestada pelo barqueiro.
⸻ Garanto que minerva não lhe aflige, ajuizai.
⸻ Apenas subirei em tua embarcação quando souber o que me aconteceu. ⸻ Disse o rapaz resoluto, levantando-se impetuosamente e enxugando as lágrimas com os pulsos sujos, que mancharam seu rosto com o pó negro da terra.
O silêncio era o tom da canção, o sopro de Eolo parecia mortificado, os grunhidos que emanavam da névoa acima de suas cabeças eram insignificantes, pois o silêncio esmagava qualquer migalha de som que ousasse soar. E sem avisos, do céu escuro e sem astros, viu-se aos poucos caírem estrelas azuladas, lindas, que iluminavam a escuridão do rio.
⸻ O que tem nessa água que tanto me chama? ⸻ Disse aproximando-se novamente das margens, estendendo a mão para tocá-las. ⸻ Os ecos me chamam do profundo desse rio turvo, os daemons me chamam daqui.
Rapidamente o homem desceu da embarcação e tomou-o pelo braço com força feroz, antes que tocasse as águas do rio. Arrastou-o em direção ao barco contra a vontade do rapaz, que aos esperneios conseguiu livrar-se e distanciar-se. Furiosos e desconfiado o rapaz disse:
⸻ Que tentastes? Pelo olimpo, quem és tu que tens tanta força? És Perseu? ⸻ Disse o rapaz impondo o corpo de forma desafiadora, como um guerreio que se prepara para batalha. Em contrapartida o homem mantinha a serenidade sob a capa de uma fria brandura.
O jovem perscrutava com os olhos todos os cantos, procurando uma rota para qual pudesse ir, lugar para onde pudesse fugir da presença do homem que nada lhe oferecia além de ainda mais questões. Mas nada havia além do muro negro atrás de si e das águas escuras adiante. Desistiu subitamente, seu corpo obedeceu rapidamente a seu pensamento, logo desfez a pose de batalha e largou os braços encolhendo os ombros.
⸻ Se és Perseu, conheces os deuses, pergunta-os então, em meu nome, porquê acordei neste lugar horrendo, pergunta a Morfeu qual o conteúdo do sonho que insiste em habitar minha mente, passando pelos meus olhos, afligindo-me. ⸻ Disse o belo rapaz chegando cada vez mais perto, a ponto de segurar a borda dos trapos negros do homem, cujo qual a estatura destacava-se quando ao lado do rapaz.
⸻ Então, tu sonhas? Diga uma palavra, nada mais.
Já não sei se o que me lembro era sonho, ou se sonho agora. Já não sei se agora lembro ou se vivo.
⸻ Sim.
⸻ Sobre ele, queres saber mais?
O sofrimento diminuirá ou crescerá se eu souber de terrível mistério?
⸻ Sim.
⸻ O que sonhas, belo mestre? O que aflige tua alma? falai.
Poderia dizer-lhe dos ecos do mundo dos sonhos, da morte terrível no meu rosto. Mas não darei meus pensamentos íntimos a um estranho, preciso saber onde estou, preciso saber seu nome.
⸻ Não posso. ⸻ Disse o jovem engenhoso. ⸻ O preço do meu sonho é pago com teu nome. Conta-me teu nome e eu te falarei o que me aflige.
Surpreso, o homem encapuzado, fincou o remo de bronze no chão e sentou-se na terra negra, nesse momento fez-se ouvir o som de grande tempestade que rompia o silêncio pela primeira vez. Então o homem pôs a mão sob o queixo, forçando a mente a reverter a situação.
⸻ Digo-te meu nome, mas conta-me teu sonho antes, pois quem paga antes de receber o que comprou? Isso te proponho. Faremos uma promessa, promessa feita aqui não pode ser quebrada nunca mais.
Convencido, o rapaz senta-se diante do homem sob a manta escura, e encarando-o começa a falar, enquanto escreve com dedo no chão de pó negro.
⸻ Era manhã, naquele sonho, eu estava caçando nos campos, Apolo cintilava com a sua carruagem no centro do céu, cheio de fadiga eu estava. Mas algo me incomodava demasiado naquele dia. Uma voz atormentava a meus ouvidos, um eco constante me tirava a sanidade.
⸻ Que dizia o eco, jovem rapaz? ⸻ Perguntou o homem, genuinamente interessado.
⸻ “Nunca vais!”, fala repetidamente ao meu ouvido, fala até hoje, até agora, neste momento em que te conto. O eco repete-se, incessante, e eu não sei o porquê.
⸻ Continue, fale mais.
⸻ Fatigado da caçada, do calor, e de ouvir o terror dos daemons nos meus ouvidos, procurei uma fonte de água que pudesse eu lavar o rosto, os cabelos, tentar fazer cessar as vozes que clamavam sem parar no meu ouvido com um banho. Finalmente encontrava lá um pequeno lago de águas prateadas, sem exitar corri para lavar o rosto. Pensava que talvez o sol estivesse ressoando as vozes na minha cabeça, e que um pouco de água lavaria meu rosto e a angústia da alma.
⸻ Até então, tudo compreendo, não és um falaz. ⸻ Falou inclinando-se, chegando um pouco mais perto do rapaz, que sentiu-se incomodado, mas continuou a contar-lhe o sonho sem mover-se de lugar ou afastar-se.
⸻ Mas Zeus havia me amaldiçoado, e não podia eu olhar-me no espelho, não podia eu ver meu reflexo. Fiquei paralisado, vendo minha própria imagem na face das águas.
⸻ Algo mais?
⸻ Enquanto sentia um desejo incessante de mergulhar nas águas e abraçar-me a mim mesmo, o eco nos meus ouvidos continuava “Nunca vais!”. Então via eu dupla coroa nesse problema, decidi que cederia e me jogaria na água, para abraçar-me, como Zeus determinou, mas muito mais pelo desejo de fazer pararem os ecos que passeavam pela minha cabeça. ⸻ O rapaz suspirou cansado largando os braços sem forças e apagando todos os desenhos que houvera feito no chão de rocha negra. ⸻ Então, quando mergulhei, acordei, finalmente. Agora estou aqui, mas o eco me perseguiu até depois do sonho. Agora conte-me seu nome.
⸻ Jovem rapaz... ⸻ Falou, levantando-se. ⸻ Para ti tenho ajuda eficaz.
⸻ Não quero teu auxílio, quero teu nome. Diz-me. ⸻ Disse sem levantar-se, como quem espera a parte do comprimento da promessa do devedor.
⸻ Posso fazer cessar os ecos dos teus ouvidos, acabarei com quem tira tua paz.
⸻ Falas a verdade, velho homem? Por favor façais cessar dos meus ouvidos tais palavras, imploro-te! ⸻ Disse ajoelhando-se diante do homem de capuz tenebroso.
O vento repentinamente passou a soprar, ressuscitava a brisa, subia das galerias negras e fazia esvoaçar as mantas negras do homem. Fazia com que as águas movessem-se minimamente com o balanço da embarcação.
⸻ Antes de livrar-te te contarei meu nome, para cumprir a promessa diante do sagrado Estige, preparado estás?. ⸻ Falou o homem, que pela primeira vez esboçou outra emoção para além da brandura e serenidade. O contraste em seu rosto foi notável, pois passou do ar solene para um aspecto sinistro, feições tenebrosas, sem perder a identidade.
⸻ Estige? O que você quer dizer com isso? ⸻ O belo rapaz recuava assustado, procurando amparo inútil na distância.
⸻ Eu me chamo Caronte, belo mestre, eu vim te buscar para nunca mais. ⸻ Disse ele caminhando na direção do rapaz assombrado com a presença daquele nome. O rapaz começara a entender o que acometeu-lhe, a luz vacilante dentro de seus olhos mostrava o pavor tomando lugar da vida. Apavorado, porém, ainda sem assumir tudo que pousava diante dos seus olhos perguntou?
⸻ Eu... Eu estou sonhando ainda? ⸻ Disse isso no momento em que encontrou atrás de si a parede de rocha negra, o atestado de inexistência de qualquer rota de fuga.
⸻ Não estás. ⸻ Disse o velho homem, pegando-o pela cintura e colocando-o sobre os próprios ombros com facilidade atlética, contra a vontade do garoto, que contorcia-se, bracejava violentamente. Era inútil.
O homem jogou-o no salão da embarcação horrenda, tomou o remo nas águas e pôs-se a remar, impondo o silêncio contra o choro do jovem rapaz. Já ajoelhado, o garoto, sem fagulha alguma de esperança, perguntou uma última vez.
⸻ Eu irei voltar para casa? ⸻ Ele temia, e sabia que a resposta era temível.
⸻ “Nunca vais”.
Jhonathan Jarison.
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